A precarização do trabalho no território das águas
Alexandre L. Godinho |
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A pesca
profissional que é praticada de forma artesanal é uma das atividades
mais tradicionais de trabalho no rio São Francisco. Milhares de
famílias ribeirinhas se dedicam a essa ocupação, por vezes, há mais de
uma geração.
Porém essa atividade
encontra-se em extinção. Questões ambientais e político-institucionais
vêm colocando seus trabalhadores e suas famílias em processo acelerado
de pauperização e exclusão social, embora nem sempre a sociedade se dê
conta disso. Focalizam-se os problemas do rio São Francisco, ora sob o
aspecto ambiental estrito, ora sob os aspectos da produção
hidroenergética, da irrigação, da transposição de suas águas – enfim,
sob as formas empresariais que se desenvolvem a partir do uso dos
recursos hídricos. Mas, há poucas notícias sobre as imbricações que
todas essas questões têm sobre o exercício da pesca profissional.
Diz-se que estoques
importantes de peixes estão em colapso por decorrência da pesca
profissional, motivo pelo qual a profissão venha sofrendo regulação
cada vez mais restritiva, em especial no trecho mineiro do rio São
Francisco. Mas tal regulação deveria ser passível de questionamento.
Em princípio, não haveria razões socioeconômicas para considerar essa
possibilidade. No entanto, essas estão sendo construídas socialmente,
com grande alarde político e pouca comprovação científica. As
características artesanais da pesca (i.e, uso de equipamentos
rudimentares, ausência de relações de trabalho assalariado e falta de
ambição do pescador) contribuem para que se examine a questão sob
outro enfoque. Se por um lado, o pescador profissional, no exercício
de seu trabalho, é um predador de peixes – prova inconteste de sua
parcela de pressão sobre os estoques – há também outros problemas que
exercem pressão, tanto sobre os estoques quanto sobre os recursos
hídricos (na quantidade e na qualidade da água para a manutenção da
integridade do ecossistema aquático).
No rio São Francisco, o ato
de capturar o peixe como principal meio de sustento da família está
associado à capacidade desse mesmo trabalhador em fazer os meios de
produção próprios a essa extração e a uma aguda percepção ambiental,
base para técnicas corporais peculiares no manejo dos petrechos.
Porém, por ser tão pequena a renda obtida pela pesca, muitos
pescadores (44,3%) são obrigados a exercer outra atividade de poucas
ou baixas qualificações: serviços gerais na construção civil,
eletricista, encanador. A lavração de terra nas áreas de vazante,
próximas aos acampamentos de pesca, com plantio de feijão ou milho,
também ocorre para proveito único da família.
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Alexandre L. Godinho |
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A questão principal da pesca
profissional no alto-médio São Francisco é a ausência de cidadania e
de acesso a equipamentos públicos essenciais. Essas ausências, embora
não tenham impedido o pescador de entender os conflitos sociais,
envolvidos no uso da água e acesso ao peixe, impede-o de afrontar a
situação. Ouve-se em toda a parte da pesca, o lamento: “o que precisa
acontecer é um milagre de Deus”. A pesca vai seguindo escassa,
perdendo velozmente sua efetividade como fonte de provimento seguro
para a família, sem que haja outra que tome sua centralidade como meio
de manutenção do grupo, contexto que favorece o aparecimento e a
exacerbação de comportamento individualistas e predatórios. Mas o
gerenciamento participativo da pesca poderia reduzir a pressão social
sobre o território e poderia elevar capacidade de autodeterminação da
categoria.
Pensar num gerenciamento
participativo da pesca, em que mecanismos de negociação e consenso que
envolvam o pescador estejam assegurados, é pensar na possibilidade de
reduzir o impacto da modernização do território sobre as comunidades
de pescadores profissionais. Esse gerenciamento deveria incluir o
pescador no processo de recuperação ambiental onde ela for necessária,
assim como na estruturação de policiamento comunitário, o pescador
podendo ser visto como “os olhos da sociedade sobre o rio São
Francisco”, como disse a ex-presidente da Federação das Colônias de
Pesca de Minas Gerais (Johansen,
1999).
É preciso que as novas
formas de regulação forneçam não apenas a necessária rede de proteção
ao pescador e à sua família, mas que estabeleçam uma situação negocial
com os demais usuários para que os usos ecológicos de que dependem a
pesca sejam melhor atendidos, conforme apresentam os relatos:
“Que o Ibama, o IEF,
fornecessem para Cemig o momento exato em que a água deveria ser
liberada para as lagoas marginais para o peixe desovar lá. Que o Ibama
e o IEF fiscalizassem, também, a mata ciliar, que serve de alimento
pros peixes. Tem que tirar o gado da mata ciliar(...). Prá repovoar o
rio no prazo mais curto? A única coisa que repovoa o rio é a água. É
preciso voltar a ter enchente para repovoar o rio.” (Sr. Norberto,
51anos, pescador profissional. São Gonçalo do Abaeté, MG).
Alexandre L. Godinho |
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“É preciso ter melhor
material. Muitos pescam no remo. Precisava ter uma tralha boa para
poder ir mais longe. O governo poderia ajudar, da mesma forma que
fazem para os lavradores: financiar a compra de material nas condições
que dá para gente pagar. A gente podia, também, ter uma cooperativa,
um armazém, que pudesse comprar comida e pagar com peixe.” (Sr. José,
53 anos, pescador profissional e vice-presidente da Colônia de
Pescadores Z-1. Pirapora, MG).
“A Colônia deveria servir
como uma cooperativa para todos os pescadores, em que eles chegavam do
rio, a Colônia pagava para eles e a Colônia venderia.” (Sr. João, 41
anos, pescador profissional, presidente da Colônia Z-3. São Francisco,
MG).
É importante, ainda, não
deixar de considerar a disposição das famílias em continuar – mais do
que no uso do rio – a fazer parte daquele espaço, a ter sua casa e seu
provimento, seu direito de transitar pelas águas e ali realizar seu
trabalho, como algo que permanece, apesar da rápida modernização,
urbana e rural do meio onde encontram-se inseridas.
Por fim, que esses que se
apresentam desde sempre como “povos do São Francisco” – não ao
município, ao estado da federação, mas ao território das águas –
possam estar devidamente representados no Comitê de Bacia desse rio.
Uma categoria cujo cotidiano de vida e de trabalho traduz-se numa
constante observação e interação com o rio, apresentando grande
potencial de contribuição nas discussões sobre os rumos do
desenvolvimento regional.
Para saber mais
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Valencio, N. F. L. S.; A. A. Leme; R. C. Martins; S. A. T. Mendonça; J. C. Gonçalves; M. I. R. Mancuso; I. Mendonça & S. A. Felix. A precarização do trabalho no território das águas: limitações atuais ao exercício da pesca profissional no alto-médio São Francisco, p. 423-446. In: H. P. Godinho & A. L. Godinho (org.). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. 468p.
Texto
adaptado
de Valêncio, N.F.L.S.; Leme,
A.A.; Martins, R.C.; Mendonça, S.A.T.;
Gonçalves, J.C.; Mancuso, M.I.R.; Mendonça, I. &
Felix, S.A. A precarização do trabalho no território
das águas: limitações atuais ao exercício da pesca profissional
no alto-médio São Francisco, p. 423-446. In: Godinho, H.P. &
Godinho, A.L. (ed). Águas, peixes e pescadores do São Francisco das Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora PUC-Minas, 2003 por Lívia Aguiar
Publicado em 19 de
janeiro de
2007 |