Alguns relatos naturalísticos do século XIX, com comentários

Alexandre L. Godinho  
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Fotomicrografia de lâminas histológicas de

 

A pesca próxima a Lagoa Santa

“Nas últimas semanas de minha estada em Lagoa Santa, perto do início da estação das chuvas, em meados de outubro, tanto os moradores da cidade como os fazendeiros locais começaram a praticar com empenho pesca com redes no rio das Velhas e seus afluentes menores ... Os frutos da pesca eram mandi, mandiaçu, mandi-bagre, surubim, crumatã, dourado, matrinchã e corvina. ... Algumas vezes participei da pescaria a pouco mais de uma légua de Lagoa Santa, no ribeirão do Mato, que passa dentro de uma floresta bastante fechada ...” (Lütken)

As espécies mencionadas são as mais importantes na pesca comercial da bacia do São Francisco. O curso d’água mencionado, hoje conhecido como ribeirão da Mata, passa por vários municípios da região metropolitana de Belo Horizonte e encontra-se em adiantado estado de degradação. É difícil imaginar a floresta descrita por Reinhardt nesse lugar.


As pessoas

“O céu tropical, a densa floresta, quase impenetrável, as muitas pessoas nuas pretas ou morenas que ora estavam se movimentando pelo rio, ora corriam pelas margens aso gritos e gargalhadas, enquanto outros preparavam comida junto a uma fogueira com parte do resultado da pesca, compunham em toda a sua simplicidade uma cena pictórica e selvagem; precisava-se muito pouca imaginação para confundir as pessoas de diferentes cores com os índios selvagens e se ver no meio de verdadeiras crianças da selva tropical” (Lütken).

A presença de pessoas de várias etnias, formadoras do povo brasileiro, incluindo tribos de índios selvagens, a uma pequena distância de onde se instalou a capital do estado de Minas Gerais, também é uma fato de destaque. Isso tudo ocorreu a cerca de 150 anos atrás.

A Lagoa Santa e sua conexão com o rio das Velhas

O “mandi-amarelo” é encontrado não só no rio das Velhas, mas também no lago (Lagoa Santa). No outono, o peixe deixa o lago em densos cardumes, através de riacho que serve de escoadouro para este; se o peixe retorna em outra estação do ano, não se sabe, mas é avidamente pescado em sua viagem, quando desce o pequeno riacho. “No dia 10 de fevereiro de 1855 os mandis estavam saindo do lago, que ficou muito cheio após uma chuva incomumente forte; foram caçados com rede, anzol, cestos e até mesmo com varas, enquanto eles estavam retidos na parte cheia do junco do lago, onde situava sua saída. Vários foram capturados, embora não fossem muitos em relação à grande quantidade de peixes que se movimentavam juntos para sair do lago, talvez para depositar suas ovas nas águas correntes do rio.” (Lütken)

Hoje, o mandi-amarelo e várias outras espécies não ocorrem mais na Lagoa Santa. Essa narrativa serve para salientar algumas das razões que fizerem diminuir a riqueza, diversidade e abundância de peixes. A ligação existente entre a lagoa e o rio hoje não passa de um córrego canalizado, poluído por esgotos e que serve como depósito de lixo. A saída da lagoa, encontra-se obstruída por uma grade e os juncos que a circundavam não existem mais, devido à alteração no nível da água da Lagoa Santa. O ciclo de utilização dos ambientes da região (rio das Velhas, riachos e Lagoa Santa) foi quebrado pela ação do homem. Atualmente, o que se pesca na lagoa são enormes quantidades de tilápias e tucunarés, espécies exóticas, trazidas da África e da bacia amazônica, respectivamente.


As iscas utilizadas nas armadilhas

... Reinhardt esclarece que “a razão pela qual a barriga nos ‘mandis’ capturados freqüentemente estivesse cheia de uma espécie de Polistes (gênero de vespas) é que são freqüentemente pescados em armadilhas, nas quais se coloca como isca um ninho de vespas. Apesar do fato de este ficar na água, as pupas completam o seu desenvolvimento nas celas fechadas e amadurecem com o tempo ; tão logo os ‘mandis’ as percebem, entram nas armadilhas e as comem, à medida que estas vão saindo." (Lütken)

No trabalho desenvolvido na calha do rio das Velhas, encontramos em Nossa Senhora do Glória, no lugarejo denominado Caquende, um pescador que se utilizava da mesma técnica descrita do século XIX para capturar seus peixes. Os ninhos de vespa, marimbondo ou mesmo abelhas são colocados dentro do covo ou jequi. Naquela oportunidade, em 1999, a armadilha continha três bagres-sapo (Pseudopimelodus fowleri).

A pesca do curimatá

Das anotações do Prof. Reinhardt sobre P. affinis (curimatá-pioa), devo ainda adicionar que é muito comum no rio das Velhas e seus afluentes e ocorre também na Lagoa Santa;... Não morde anzol, ...mas é capturado com rede ou com um instrumento de pesca conhecido como pari: em lugares onde o rio tem uma pequena queda, faz-se uma represa de gravetos e galhos, na qual se deixa somente uma abertura de 3-4 pés (0,95 a 1,25 metros); abaixo desta prende-se uma grande caixa com o fundo de treliça, na qual os peixes que nadam com o fluxo do rio pela abertura, ficam presos e são capturados, já que não conseguem volta subindo a corrente de água em queda que derrama na caixa.

As curimatás, que possuem hábito alimentar iliófago (comem lodo) realmente não eram pegas com anzol até que se iniciou recentemente a utilização de massas com fortes odores que as atraem e permitem sua captura com anzóis. Essa espécie é ainda muito abundante e constitui-se em importante item da pesca comercial na bacia do São Francisco. O fato da mesma não ocorrer mais na Lagoa Santa com certeza se deve ao fato do fluxo de comunicação com rio das Velhas ter sido interrompido. Não se tem notícias recentes da utilização da pesca com pari.


O folclore dos "filhotes de surubim"

Como o Prof. Reinhardt já mencionou em sua monografia sobre Stegophilus insidiosus, esse estranho pequeno bagre (que procura abrigo na cavidade branquial de nosso surubim) “é uma das estórias de todos os pescadores mineiros, segundo a qual o surubim guarda seus filhotes sob o opérculo, até que eles alcancem um certo tamanho” ... Reinhardt conversou com um pescador que havia puxado um casonete (exemplar mais velho) para dentro da canoa e viu os jovens saírem do esconderijo; ... sabe-se que , como este pescador deveria provar sua afirmação de que o ‘sorubim’ choca seu filhote na cavidade branquial, os supostos filhotes de ‘sorubim’ seriam aqueles bagres parasitas (S. insidiosus).

Até hoje encontramos pescadores da bacia do rio São Francisco que acreditam que os pequenos bagres que são observados após a captura de um surubim seriam seus filhotes. Alguns vão além e chegam a afirmar que em cada mancha do peixe se instalaria um filhote que ali ficaria para ”mamar”. O surubim libera milhões de ovos na água corrente do rio, sendo impossível qualquer tipo de cuidado parental. Esses ovos descem rio abaixo e alcançam as lagoas marginais das várzeas, durante o período chuvoso quando os rios encontram-se acima de seu nível normal.

Para saber mais

  • LÜTKEN, C.F. Peixes do Rio das Velhas: uma contribuição para a ictiologia do Brasil. In: ALVES C.B.M.; POMPEU P.S. Peixes do Rio das Velhas: passado e presente. Belo Horizonte: SEGRAC, 2001. cap. 2, p 23-164

 


Contribuição de Carlos B.M. Alves

Publicado em 09 de setembro de 2003

Atualizado em  28 de setembro de 2006

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